O livro da besta-fera
I – O mundo é um bairro (ou General Lee)
- Olha o passarinho!
Pronto era ouvir essa frase e remeter meus olhos pra árvore. Desde meu nascimento minhas principais lembranças foram com essa frase dita pela minha mãe, até por que dos três, tive e tenho o maior número de fotos, recordações da minha infância.
O olhar atento das vizinhas, que revezavam para tomarem conta de mim, quando não era eu que ia pra casa enorme delas, era recorrente também. Depois o cheiro de churrasco, os jogos do Flamengo, as batidas de carros na avenida, o grito de ‘pega ladrão!’,...não foram poucos, sem falar das viagens, pra Santa Tereza, no interior do Espírito Santo – onde nasci e de onde vos escrevo – para o Rio de janeiro: madrinha e padrinho, para Brasília: tios e prima, foi assim minha infância até os dez anos.
Fim do primeiro ciclo, aquele em que não se deve fazer nada a não ser observar atento os detalhes do piso, azulejos, os pêlos do primeiro cão, a roupa da empregada, caminhão de lixo, pé de pitanga, codornas, o cheiro de querosene, óleo, gasolina.
II – O mundo é a região sudeste e roças próximas
Desde quando nasceu Rodrigo olhava pela janela do quarto do pai, o portão fechado de cima embaixo com chapas grossas de zinco. Mais grossas ainda eram as camadas de tinta, ora azul, ora verde, que contrastavam com o muro nem tão alto, nem tão autoritário assim geralmente bege.
Por ele Rodrigo subia na acácia amarela, até o dia em que tacando bagas de semente da reluzente espécie em fim de tarde num fusca, foi obrigado a parar de aventurar-se por aquela que foi seu cais em meio ao mar de rua, pessoas e veículos. Quebrara a calha do automóvel que impedia da chuva molhar o braço esquerdo do motorista. O carcamano saltou do carro, deu conta do prejuízo, e num gesto resolvido voltou ao veículo, terminou a meio-rotatória e acelerou para alcançar o sinal. Infelizmente acertara o alvo com rápida desenvoltura.
Na rua dele não passava o ônibus, fato compensado pela avenida que fazia transitar grande parte dos automóveis daquela década de oitenta. Sua casa era fruto de um projeto da cidade, o primeiro, de bairro planejado com residências iguais, terrenos fartos e uma frondosa pedra no morro do Jaburuna no qual avistava embaixo dela uma mata com árvores fortes.
As mulheres da idade da sua mãe o surpreendiam com aqueles lenços no cabelo, eram mulheres do lar mesmo. Não dirigia, fazia a comida, e aguardava, seu marido chegar pro almoço; isso era na década de oitenta. Cuidar das plantas sempre foi um dom auto-imposto a elas, como única regalia terapêutica para aquela rotina apertada com cintos e sapatos de puro couro. Época do vinil, fita cassete, cervejas em lata, de aço.
A educação dos menores era feita de forma litúrgica, silenciosa e devocional. Tudo alinhavado pelo mercado tímido de produtos. As fraldas eram de pano, e o hipoglós e as papinhas prontas para o almoço eram os únicos mimos que chegavam aos pupilos.
Toda vez que eu vejo uma barata vindo em minha direção, eu lembro de Gregor Sansa, aí eu levanto a cabeça e Dinho que não li “A Metamorfose”.
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